segunda-feira, 10 de março de 2014

"Degustação": O Conto do Vento

Quando o Vento varre uma relva, ele faz pequenas marolas como em um lago; em um milharal, ele faz grandes ondas como no mar: essa é a travessura do Vento. Então ouça as estórias que ele conta; ele as conta em bom tom, como música entre as árvores da floresta e, de modo diferente, quando espremido entre paredes com todas as suas fendas e rachaduras. Você sabe como o Vento persegue as nuvens brancas como se fosse um rebanho de ovelhas? Você ouve o Vento lá embaixo, uivando pela porta aberta como um vigia soprando sua trompa? Então também ouve como ele assobia nas chaminés, fazendo o fogo estalar e faiscar. Como é aconchegante sentar-se ao lume quente do fogo ouvindo os contos que ele tem para contar. Deixe o Vento contar sua estória! Ele pode contar mais aventuras que todos nós junto. Vamos ouvir:
“Ufa! Ufa! Vamos, vamos!” Esse era o refrão da canção do Vento.
“Próximo ao Grande Cinturão havia uma velha mansão com grossas paredes de tijolos”, disse o Vento. “Conheço cada pedra dela; eu já as conhecia antes que fossem usadas para compor o Castelo de Marsk Stig, localizado no cabo. Ele tinha que desabar. As pedras foram usadas novamente, em novas paredes de um novo castelo, construído em outro lugar, a Mansão Borreby", prosseguiu o Vento.
“Eu observei os homens e mulheres nobres de todas as variadas raças que lá viveram. Agora vou contar a vocês sobre Valdemar Daae e suas filhas!”
“Ele vivia de cabeça erguida porque vinha de uma linhagem real! Ele sabia muito mais do que caçar corças ou esvaziar garrafões; ele sabia como administrar seus negócios e era muito confiante. Sua esposa andava orgulhosamente pelos salões de pisos brilhantemente polidos, em seu vestido de brocado; a tapeçaria nos cômodos era maravilhosa, e a mobília era toda de madeira com motivos nela esculpidos. Ela havia trazido muito ouro e muita prata com ela; havia cerveja alemã na adega; cavalos fogosos relinchavam nos estábulos; Mansão Borreby era um lugar muito rico.”
“E havia também as crianças, três graciosas donzelas, Ida, Johanna e Anna Dorothea. Eu bem me lembro de seus nomes,” continuou o Vento.
“Eram pessoas muito ricas e aristocráticas; as meninas nasceram e foram criadas na riqueza! Ufa! Ufa! É distante”, bramiu o Vento e depois continuou com sua estória.
“Não se via no castelo, como se via em tantos outros castelos nobres, a esposa e suas filhas sentadas em um grande salão girando a roda de fiar. Não, ela gostava de tocar o alaúde e de cantar suas canções, as quais raramente eram as antigas cançonetas dinamarquesas, mas sim canções em línguas estrangeiras. Havia vida e contentamento, hóspedes distintos os visitavam constantemente, e havia sempre música. O retinir de taças de cristal era tão alto que nem mesmo eu conseguia abafa-lo. Lá havia arrogância e ostentação, cheia de senhores, mas sem as benções do Senhor!” contou o Vento.
“Então um dia veio um pedido de socorro,” disse o Vento, “quando eu vim do oeste. Eu vi navios naufragados na costa de Jutland Ocidental, circulei sobre a charneca e as sobre as margens verdes da Ilha de Funen, e agora venho até o Grande Cinturão, soprando e rugindo. Eu repouso na costa da Zeeland, próximo a Mansão Borreby, onde ainda existe uma linda floresta de carvalhos. Os garotos da vizinhança foram a floresta coletar galhos e ramos secos, para fazer uma fogueira na cidade, ao redor da qual rapazes e garotas cantavam e dançavam”.
“Ainda repouso por lá”, disse o Vento, “mas balancei um dos galhos trazidos pelo o mais bonito dos garotos e, repentinamente, a chama de sua pilha de madeira tornou-se a mais alta de todas. Com isso ele se tornou o líder entre os rapazes, com o privilégio de ser o primeiro a escolher uma prenda, uma garota para acompanha-lo. Era muita alegria e divertimento, do tipo que eu nunca encontrei na rica Mansão Borreby” completou o Vento.
“Então a Senhora Daae conduzia uma carruagem dourada, puxada por seis cavalos, em direção a Mansão. Estavam com ela suas três filhas. Elas eram de fato três lindas moças, que lembravam flores: uma rosa, um lírio e um jacinto. A mãe era como uma tulipa, orgulhosa e esplendida. Ela nem ao menos cumprimentava as pessoas no caminho, as quais paravam o que estavam fazendo para saudá-la com reverências. Pomposa como uma tulipa ela passava de cabeça erguida. Sim, rosa, lírio e jacinto, eu as via as três; e que prendas se tornariam um dia, penso eu. Certamente seus jovens seriam garbosos cavaleiros, talvez até príncipes! Ufa! Ufa! Vamos, vamos!” completou o Vento. “E assim que a carruagem passou, as pessoas voltaram à dança. A chegada do verão estava sendo celebrada em muitas cidades, em Borreby, na vila de Tareby e em muitas outras,” rematou o Vento.
“Mas quando acordei aquela noite, a Senhora Daae havia se deitado para nunca mais se levantar,” confidenciou o Vento. “Aconteceu com ela como acontece com todas as pessoas, não há novidade sobre isso. Pesaroso, Valdemar Daae sofreu a perda por um tempo: ‘a mais altiva árvore pode dobrar, mas não quebrará’. As filhas choraram e todos na mansão também choraram. Senhora Daae havia partido e eu também parti em seguida”, disse o Vento.
“Mais tarde eu voltei, como sempre volto à Ilha de Funen e às águas do Grande Cinturão, descansando em Borreby ao abrigo da bela floresta de carvalho. Lá, águias, pombos torcazes, corvos e ate cegonhas fazem seus ninhos; era o tempo da primavera, e enquanto algumas aves chocavam seus ovos, outras já cuidavam de seus filhotes. Como eles voavam! Como eles grasnavam e gorjeavam! O som de um machado podia ser ouvido, machadada depois de machadada; as árvores estavam sendo derrubadas. Valdemar Daae havia decidido construir um navio. Um grande navio de guerra, com três deques, o qual certamente o rei gostaria de comprar, e por isso as árvores deveriam ser derrubadas e os pássaros perderiam suas casas. O falcão fugiu aterrorizado quando seu ninho foi destruído, a águia e as demais aves fugiram enraivecidas, bradando sua ira e agonia; eu podia entendê-los bem. Os corvos e as gralhas guinchavam em escárnio. Caw! Caw!” contou o Vento.

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